sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Sinclair Ferguson-Anseio Espiritual

 Alguém já descreveu o livro de Salmos como “a anatomia de todas as partes da alma”. Em suas páginas, nada é ocultado do leitor. Altos e baixos são registrados, sem censura. É como se fosse uma descrição de nossa própria experiência.

 Em alguns casos, porém, reconhecemos nos salmos a descrição de uma experiência desconhecida e nova. É como se o autor estivesse nos dizendo: “É assim que Deus pode agir. Prepare-se para reconhecer a mão dele em sua vida agindo de forma semelhante”.

 Os Salmos 42 e 43 são um bom exemplo disso porque trazem uma contribuição extraordinária ao nosso entendimento de crescimento espiritual.

 O Salmo 42 começa assim: “Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo; quando irei e me verei perante a face de Deus?”

 Estas palavras foram escritas por alguém que tinha anseio de conhecer Deus! Esse desejo é parte essencial de todo verdadeiro crescimento espiritual. Ser cristão significa conhecer Deus. Crescer como cristão significa aumentar nosso desejo de conhecer Deus. Essa é a síntese da vida cristã.

 Jesus disse: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro” (Jo 17.3). Os verdadeiros homens e mulheres da fé são o “povo que conhece ao seu Deus” (Dn 11.32). Essa é a razão por que, no Velho Testamento, uma das bênçãos que esperavam para a era vindoura a ser inaugurada pelo Messias era que os homens e as mulheres conheceriam “ao Senhor” (Jr 31.34).

 Conhecer Deus é o cerne da vida cristã. É fundamental para todo crescimento espiritual. Se não estivermos crescendo no conhecimento de Deus, não estamos crescendo! Nossa maior fraqueza como cristãos hoje é que não conhecemos Deus de verdade. Quando muito, conhecemos fatos a respeito dele.

 Durante um período anterior de sua vida, o homem que escreveu os Salmos 42 e 43 pode ter se contentado com esse nível de experiência espiritual. Porém, Deus começou a ordenar as circunstâncias dele de tal forma que um novo desejo de crescer espiritualmente encheu seu horizonte. Ele começou a sentir forte anseio por conhecer Deus.

 Podemos observar três estágios em sua experiência.

1. Anseio


 Como é a experiência de ter um profundo desejo de conhecer Deus? Esses salmos indicam que pode ser algo extremamente doloroso e perturbador. No caso do salmista, o sentimento principal foi abatimento. Ele descobriu que não conhecia Deus o quanto era necessário.

 “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro em mim?” (Sl 42.5).

 Talvez, em tempos passados, ele conhecera a presença de Deus com manifestações de muito poder. Agora, porém, seu espírito estava estéril e seco. Por causa da aridez, estava clamando para que o orvalho da presença de Deus viesse reavivar e restaurá-lo.

 É uma grande tentação, ao avaliar a condição desse homem, dizer que se tratava simplesmente de um filho de Deus derrotado e desobediente – um desviado! Entretanto, não há menção alguma de arrependimento ou de qualquer pecado que o estivesse barrando da presença de Deus. Esses não são salmos de penitência ou contrição pelo pecado.

 De fato, percebemos exatamente o contrário. Aqui está uma pessoa que se refere a Deus como “minha rocha” (42.9). “À noite”, ele confessa, “comigo está o seu cântico” (v.8). Pouca semelhança com palavras de um desviado! 

 O que estava acontecendo de fato era que Deus queria arar o terreno ocioso e endurecido do seu espírito. Queria conduzi-lo a um novo estágio de experiência espiritual. Na vida espiritual, assim como na natural, o trauma do nascimento é apenas o primeiro de uma série de transições; cada passagem de um estágio a outro envolve lutas e muitas “dores de parto”.

2. Processo usado por Deus


 Quais foram os meios que Deus usou para produzir esse novo contexto de circunstâncias? Podemos observar que três instrumentos foram escolhidos para despertar seu desejo espiritual.

a. Memórias. Enquanto clamava a Deus em sua perplexidade, ele dizia: “Lembro-me destas coisas – e dentro em mim se me derrama a alma...” (42.4). Do que ele se lembrava?

 Dentro da mente, estava novamente em Jerusalém. Via as multidões de peregrinos em uma das grandes celebrações festivas: “...de como passava eu com a multidão de povo...” (v.4). Ele lembrava do ambiente: “gritos de alegria e louvor”. Era ele mesmo que ficava à frente, guiando a procissão. As memórias vinham e inundavam a mente. Sim, dias tremendos aqueles!

 Ele se lembrava da graça e do poder da presença de Deus com seu povo por uma razão específica: para despertar seu coração a ter anseio e expectativa para que isso voltasse a acontecer!

 Quando Paulo estava preocupado com o crescimento espiritual do seu jovem amigo Timóteo, ele o encorajou a usar a memória. “Lembre-se do dia em que impusemos as mãos sobre você”, Paulo exortou. “Pense na ocasião em que o Espírito Santo separou-o por nosso intermédio. Você não recorda como Deus selou sua vocação e abençoou-o tremendamente? Não se lembra como se entregou voluntariamente ao Senhor em resposta à sua imensa bondade para com você? Lembre-se daquele momento, Timóteo, e permita que a memória dele o desperte para buscar e servir a Deus agora” (veja 2 Tm 1.6,7; 1 Tm 4.14).

 Muitos de nós temos memórias semelhantes de momentos e lugares de bênção extraordinária em nossa vida. Você se recorda de algum encontro com Deus? Então permita que isso gere no seu coração uma sede, um anseio, um novo desejo de conhecer Deus e de sentir a presença dele de maneira semelhante.

b. Isolamento. O salmista só tinha recordações de Jerusalém porque naquele momento estava muito distante, isolado dos locais e cenários de todos esses acontecimentos que lhe vinham à memória. Estava cortado da comunhão vibrante com o povo de Deus de que desfrutara anteriormente.

 Esse senso agudo de isolamento não foi algo peculiar à experiência do salmista. Muitos passam por coisas semelhantes quando experimentam grandes mudanças em sua vida. Sentem-se distantes, desorientados, inúteis e sem propósito na vida cristã. Uma mudança de emprego, de casa, de vizinhança pode trazer esse efeito. Outros fatores que podem causá-lo incluem a perda de um familiar muito próximo e uma transição forte quando os filhos saem de casa ou quando se aposenta.

 O que Deus quis ensinar ao salmista através de isolamento? O que ele quer ensinar para nós em situações semelhantes? Deus quer ensinar-nos lições que não podemos aprender por meio da comunhão.

 Na solidão e separação, aprendemos a olhar para Deus, a confiar em Deus, a desejar a presença de Deus. Descobrimos que, no passado, dependíamos mais do encorajamento de outros do que do próprio Senhor. Enquanto antes conhecíamos Deus com o auxílio (muito legítimo) de amigos e companheiros cristãos, agora precisamos aprender a conhecê-lo em isolamento, sem qualquer ajuda externa.

 Por essa razão, este salmo é chamado Masquil, ou cântico de instrução. O autor está dizendo: “É isso que Deus me ensinou por meio da minha experiência; é o que ele pode querer ensinar para você também”.

c. Hostilidade.  O salmista é como uma corça perambulando pelos penhascos e rochas em alto verão, procurando água para saciar a sede. Entretanto, ele não sente apenas sede; sente também que está sendo perseguido.

 Há vários indícios de pressão hostil em suas palavras. As pessoas lhe dizem: “O teu Deus, onde está?” (42.3). Ele vive se lamentando “sob a opressão dos inimigos” (42.9). Suplica a Deus que o livre do “homem fraudulento e injusto” (43.1).

 Diante disso, não é de se admirar que ele se sentisse abandonado por Deus (43.2). Provavelmente, sentia que Deus estava cavando sua sepultura espiritual e que não dava mais para suportar a pressão. “Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha causa”, ele clamou (43.1).

 O que estava acontecendo? Deus estava mostrando-lhe o quanto precisava depender dele por proteção. Possivelmente, em um estágio anterior de sua experiência, o salmista achava que era capaz de defender-se de quem quer que se opusesse à sua fé. Agora estava descobrindo o quanto era realmente vulnerável.

 Talvez ele também fosse confiante demais com relação à sua capacidade de permanecer firme contra as forças das trevas. Agora estava começando a reconhecer que pertencer ao Reino de Deus fazia dele um alvo dos ataques do inimigo. Ele precisava de ajuda!

 Nada disso, contudo, estava fora do controle de Deus. Quando o salmista sentia que Deus estava cavando sua sepultura, ele estava parcialmente correto. Em um sentido, Deus estava realmente fazendo isso. Deus queria que ele chegasse ao fim de suas próprias forças e autoconfiança. É sempre nesse lugar que se começa a verdadeiramente conhecer Deus.

 Porém, não era uma sepultura que Deus estava cavando. Era um poço! Pois das profundezas dessa experiência haveria de fluir um rio de bênção espiritual para ele mesmo e, através dele, para outros. Por meio de tudo isso, ele estava começando a conhecer Deus. Preço algum seria grande demais para isso!

3. Satisfação Espiritual


 No meio de sua experiência de profundo anseio por Deus, o salmista orou pedindo satisfação espiritual. De maneira específica, focou sua oração na Palavra de Deus e na adoração, os instrumentos gêmeos que Deus usaria para restaurar alegria à sua vida:

 “Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte, e aos teus tabernáculos. Então irei ao altar de Deus, de Deus que é a minha grande alegria; ao som da harpa eu te louvarei, ó Deus, Deus meu” (Sl 43.3,4).

a. A Palavra.  O salmista pede que Deus envie sua luz e sua verdade. Como lemos em outro salmo:

 “A revelação das tuas palavras esclarece, e dá entendimento aos simples. Abro a boca, e aspiro; porque anelo os teus mandamentos” (Sl 119.130,131).

 O que ele quer dizer? É claro que sente falta da oportunidade de ler a Palavra de Deus junto com outras pessoas. Contudo, ele deseja muito mais do que a restauração dessas oportunidades perdidas. Ele pede que Deus envie sua luz e sua verdade. Está buscando a “revelação das tuas palavras”.

 Quando nascemos de novo, somos transportados das trevas para a maravilhosa luz de Deus (1 Pe 2.9). Uma das coisas que acompanham essa mudança é a penetração da verdade de Deus em nossa mente, consciência e coração. Vemos nossa vida à luz de Deus pela primeira vez. Somos levados a ver o Reino de Deus pela primeira vez (Jo 3.3), e recebemos uma interpretação radicalmente nova da nossa vida. Iluminação e revelação tornam-se experiências reais (veja Hb 6.4).

 É comum para cristãos recém-nascidos experimentarem esse efeito da Palavra de Deus regularmente. Há tanta coisa nova para aprender. Essas novas verdades sobre a vida cristã costumam chegar com impacto marcante, causando experiências inesquecíveis.

 Junto com essa iluminação da mente, experimentamos libertação e purificação em diversas áreas. Correntes que antes nos amarravam, hábitos que não conseguíamos quebrar são superados e derrotados pelo poder de Deus. Não chegamos à perfeição (longe disso), mas já começamos a provar os poderes da era vindoura (Hb 6.5). Somos novas criaturas.

 Mas não é somente na vida de novos convertidos que Deus é capaz de fazer isso. Ele pode falar com poder extraordinário sempre que quiser. Pode trazer nova iluminação, graça libertadora, forte segurança. O salmista pediu exatamente isso. Há momentos em nossa experiência em que os meios normais de crescimento precisam ser complementados por iluminação especial de Deus, para que haja progresso significativo. Este era um desses momentos na vida do salmista. Pode ser na nossa, também.  

b. Adoração. Depois de pedir que Deus viesse a ele, o salmista determinou que sua resposta seria ir a Deus. Ele subiria o seu “santo monte” (v.3). Iria ao altar de Deus e encontraria em Deus sua “grande alegria” e prazer (v.4).

 Ele descobriu agora que todas as experiências da vida são ordenadas pelo Senhor visando um grande propósito. Provações e dificuldades, de maneira especial, são permitidas para esse fim. O objetivo é conduzir-nos à presença de Deus, para que o adoremos de todo o coração. Esse é um sinal autêntico de crescimento espiritual.

 Há um significado especial nesta sequência: subir o monte, ir ao altar, descobrir em Deus a grande alegria. A sequência da experiência espiritual não mudou daquela época para cá. Nós também precisamos ir ao lugar no qual Deus prometeu encontrar-se conosco. Esse lugar não está mais em Jerusalém; está em Cristo.

 E o que vemos ali? Encontramos também um altar, um lugar de sacrifício: a cruz. Somos chamados a apresentar nossos corpos no altar, como oferta de ações de graças pelo sacrifício que Jesus fez de si mesmo por nós. Esse é o nosso culto espiritual (Rm 12.1,2). Só então é que descobriremos Deus como nossa principal alegria.

 O primeiro passo em direção a conhecer Deus melhor é a consciência de que você ainda não o conhece plenamente. É ter sede de Deus. É descobrir que ele possui água que pode satisfazer nossos anseios mais profundos. É dizer a ele: “Senhor, dá-me dessa água...” (Jo 4.15).     

Publicado originalmente na revista “Heartcry”, de Life Action Ministries, edição 47, verão de 2009.


por Sinclair Ferguson

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